Ultimamente Aram detestava a visita do tio, na verdade, detestava qualquer visita que viesse interromper o seu bem-sucedido e satisfatório calvário de dor e autopiedade. Yasmina havia partido para a vida além da vida e ele merecia todo aquele sofrimento pois não a tinha protegido. A Deusa Lua o havia abençoado quando a colocou em seu destino e ele não fora digno daquela graça, às vezes, escolher permanecer vivo era muito mais difícil do que morrer.
Agora ele teria que viver o resto de seus dias sob o peso de ter sido indiretamente responsável por sua morte e a dor de não ter mais a sua Luna destinada. Para viver seu suplício, ele só precisava ficar sozinho, o que era muito difícil, visto que ainda era o Alfa daquele clã, apesar de vir há meses negligenciando seus deveres. Ele não fazia questão de ouvir os muitos lamentos do tio, que vinha trazer notícias do conselho de anciãos. O homem disse a Aram que os mais velhos estavam a ponto de desistir dele e já estavam procurando uma saída para aquela situação.
— Aram, você precisa reagir, o futuro do clã não é um jogo. Eu entendo que passou por uma situação muito ruim, mas precisa retomar o comando. Há meses que você não se interessa por nada que não seja uma garrafa de bebida, todos estão comentando que o Alfa sucumbiu ao álcool e tenta se matar lentamente. O povo tem muitos problemas, precisam de orientação. Daqui a pouco o inverno vai chegar e vamos todos morrer de fome. Você sabe bem que medidas precisam ser tomadas para garantir que todos tenham como se manter nos meses mais frios.
Aram ouvia o tio em silêncio, permanecia sentado na mesa da cozinha com um copo de whisky barato nas mãos. A barba estava crescida e sua higiene não era das melhores, era o oposto do Alfa que um dia fora. Passava a maior parte do dia bêbado, sem condições de aconselhar ninguém, quanto mais resolver contendas dos seus tutelados. Ele precisaria de ajuda da Deusa Lua se tivesse que se envolver em algum combate corpo a corpo ou se transformar em fera pois, desde que exterminou quase todo o maldito clã Boram, nunca mais havia se transmutado ou lutado.
— Eles não precisam de mim, tio, precisam é de outro Alfa. Um que possa protegê-los, um que possa proteger a própria esposa.
Ele falou com a voz carregada de amargura.
— Você é o Alfa deles por direito de sangue, todos respeitam isso. Já passou muito tempo e ninguém quis desafiá-lo pela liderança, mas a situação está ficando insustentável, você precisa reagir meu filho. Já se escutam rumores de pessoas querendo partir, famílias inteiras. É isso que você quer? Mulheres e crianças viajando durante o inverno, com poucos suprimentos e a mercê de ataques pelas estradas? Pode aguentar essa culpa nas suas costas?
A verdade é que Aram não podia. Apesar de tudo ele ainda se sentia responsável por aquelas pessoas, não podia perder mais ninguém. Especialmente depois de sua vingança contra a matilha, em que todos os lobisomens da região estavam apenas esperando uma oportunidade de atacar um Lycan, ou uma vila inteira deles. Quando passasse o inverno ele decidiria o que fazer, mas até lá o tio tinha razão, ele precisava reagir.
— Eu tenho outra coisa para lhe contar. — Disse o ancião se aproximando mais dele, e colocando uma mão em seu ombro. — Você sabe que precisa dar força ao clã para enfrentar o duro inverno, recuperar sua moral perante eles. Eu sei uma forma de você conseguir isso. Uma fêmea membro da matilha que você persegue foi encontrada vagando na floresta a poucos dias, ela disse que foi a única que restou. Um grupo de lobisomens está em poder dela, e eles gostariam de entregá-la a você, em troca de uma trégua entre os clãs.
Eu o aconselho a tomá-la como esposa, você precisa de um herdeiro, e um híbrido se tornaria futuramente um Alfa muito poderoso. O conselho aprova essa decisão e julga que é o melhor a se fazer, sua vingança foi sangrenta Aram, se algo não der um basta nisso, muito sangue inocente será derramado.
Pela primeira vez ele levantou os olhos do copo e encarou o homem mais velho com uma fúria contida nos olhos.
— Tio, como pode sequer mencionar uma coisa dessas? Eu quero essa fêmea, sim, mas para destruí-la assim como fiz com o resto da matilha. Eu jamais conseguiria me casar com ela.
— Não seja ingênuo, ela é só uma menina. Apenas recentemente fez dezoito anos, não tem nada a ver com os lobos que fizeram aquela coisa horrível. Eles garantiram que ela é inofensiva, apenas deu azar de nascer na família errada.
— Dezoito anos? Mas ela é pouco mais que uma criança, eu já tenho trinta e dois!
Aram não queria outra esposa, menos ainda uma que era pouco mais que uma menina. Sua prometida havia morrido, não existia mais nada para ele na vida. E a ideia de desposar uma lobisomem, ainda mais uma que pertencia ao clã Boram, lhe causava náuseas. Não conseguiria conviver com ele mesmo se fizesse aquilo, não poderia se olhar no espelho e se respeitar.
Porém, o tio foi enfático que ele precisava reassumir seu lugar e seu poder, ele devia isso ao povo, os anciãos já estavam cogitando incitar uma disputa para um novo Alfa. Mortes aconteceriam, na melhor das hipóteses muitos deixariam o lugar para uma jornada muito perigosa. Ele não podia carregar mais sangue nas costas.
Refletiu que, no momento, o melhor seria aceitar a oferta e fazer dela sua companheira. Precisava se lembrar que era o espelho do clã e tudo dependia dele. Aquela união agregaria poder a eles, e ele poderia subjugar uma loba, mostrando que os Lycans eram definitivamente mais poderosos, fazendo-a pagar de várias formas pelo que sua matilha havia tirado dele. Bebeu o resto da bebida que havia no copo em um gole só e se serviu mais, que ingeriu também de um gole só.
— Tudo bem, eu vou fazer isso. Mas não sei se a alcateia vai gostar, acho que essa garota vai passar maus momentos por aqui. Eu não tenho muita paciência com crianças.
O tio sorriu, aliviado por ele aceitar o oferecimento, aquele era o primeiro passo para retomar o controle de tudo.
— Estamos contando com isso, a ideia é que ela descubra rápido porque está aqui. Conto com você para fazê-la saber todos os dias, como nós Lycans somos superiores em tudo e espero que ela aprenda rápido que a situação dela aqui é de subserviência. Você pode ter certeza de que é só ela andar pela rua, que o povo não vai deixá-la esquecer. Você tomou a decisão certa Aram, poderá terminar sua vingança e nós teremos o nosso troféu. Mas por favor, vá tomar um banho e trocar de roupa, assim como está parece mais um mendigo do que o grande Alfa que eu sei que você é.
O senhor idoso terminou de falar e se retirou, deixando ele novamente sozinho com seu tão apreciado silêncio. Pelo visto aqueles momentos estavam prestes a acabar, muito em breve ele seria um homem casado novamente, mas dessa vez não com o amor da sua vida, e sim com uma loba juvenil. A garota não poderia ter escolhido uma hora pior para aparecer, logo ela descobriria isso por conta própria.